domingo, 27 de abril de 2014

Procura-se


“Conte-me mais sobre o que se lembra desse dia”. Fora o que me dissera aquele homem com a caderneta, e fora através dele também que ouvi a primeira frase sensata ao contar minha historia. Seu olhar era de curiosidade, fitava-me com um par de olhos castanhos sem vida, que após meu relato encheram-se de um brilho impar, o óculos que emoldurava seu rosto triste insistia em cair sobre seu gigantesco nariz, e como sinal de sua ansiedade mexia constantemente no farto bigode grisalho de sua face. Inspirei o ar de lavanda, tão artificial quanto tudo naquela sala, ajeitei meu corpo naquela grande cadeira que aos poucos me fagocitava, engoli a saliva que permanecia em minha boca, fechei meu olhos e tentei me lembrar.

-Eu dirigia aquela noite... Não me lembro bem, só sei que eu já não era mais o mesmo.

Ouvi o som de sua caneta contra a superfície dura que segurava em suas mãos, descaradamente, ele me analisava e fazia notas. Enquanto batia com a ponta dos dedos na mesa de madeira me perguntou.

- Mas você não era mais o mesmo durante a ida ou ao voltar? Acredito que faça diferença se lembrar em qual parte do caminho ocorreu este incidente.

Respondi confuso:

-O quão isso é relevante? Talvez ele já não estivesse lá há tempos... Só tenho certeza de que foi naquela noite em que ele definitivamente fugiu.

-O que lhe proporciona essa tamanha certeza?

E pela primeira vez nesta conversa senti o cinismo daquele homem uniformizado, em virtude de sua grosseria impaciente, encarei-o. Olhei o mais fundo que pude em seus olhos e lhe disse:

-Sei bem que fora naquela noite, por muitas vezes sei que dei brechas para que este órgão pulsátil rebelde fugisse porem, nunca antes havia sentido este vazio em meu lado esquerdo. Foi naquela noite que meu coração fugiu. E não importa se fora indo ou vindo de algum lugar. Ele deve ter pulado pela janela, em algum momento de maior emoção.

Talvez ele achasse que eu estivera me drogando a muito, e embora estivesse muito curioso a respeito da historia do coração fugitivo seus risos deixavam claro o quanto achava ridículo que de fato alguém pudesse vivenciar tal situação. Pegou um cigarro de sua caixinha de Lucky strike, fez um sinal pedindo meu consentimento para que pudesse acendê-lo, tragou e retrucou-me enquanto expelia a fumaça cancerígena.

-Meu jovem, você tem ideia do quanto isto é absurdo? Seria mais coerente se me dissesse que roubaram seu coração! E não que ele simplesmente tenha lhe saltado do peito e partido em viagem! No caso da primeira hipótese poderíamos considera-lo um louco, um poeta que gosta de metáforas... Mas acreditar nesta fuga seria no mínimo demência!

Continuei a encara-lo, e como num gesto expressivo de impaciência comum de quando o interlocutor não nos compreende. Juntei meus joelhos e balancei levemente meu corpo. Inspirei e expirei, e por fim, o respondi.

-Tudo que mais quero neste momento é recuperar este coração, e muito se engana o senhor ao dizer que ele não me foi roubado. Eu perdi meu coração para o mundo; o mundo arrancou-me do tórax esta bomba vital. Entendo agora o quanto aprisionei entre as minhas costelas aquilo que sempre me encheu de vida... E vim até o senhor em um apelo, para que quem quer que o encontre me devolva. Acredito que agora serei capaz de mantê-lo comigo, sem sufoca-lo com minhas emoções tão resguardadas. Sinto falta de senti-lo, pulsando a esquerda, das taquicardias e das decisões estupidas que tomávamos juntos. Sei o quanto o maltratei, o quanto o negligenciei, e acredito que este seja o maior motivo da fuga. Portanto, peço gentilmente ao senhor que busque por ele.

O velho analisou-me de cima a baixo, levantou as sobrancelhas, apagou o cigarro em um pequeno cinzeiro branco e me disse com sua voz rouca:

-Entendo o quanto isto lhe faz falta rapaz, acredito que o que esteja ao meu alcance seja distribuir cartazes com a foto de seu coração, a data de desaparecimento e o ultimo local em que fora visto. Espero que isto ajude a saciar o oco que existe em você neste momento.

Naquele momento senti sinceridade nas palavras do velho e parti dali esperançoso, se esta é uma emoção que alguém desprovido de coração pode ter.

Os cartazes foram espalhados conforme o prometido, contudo, meu coração que não habita mais em mim ainda viaja em busca de sua felicidade. Afinal, nós dois sempre ouvimos que casa, pátria ou qualquer outra coisa que nos atribua esse sentimento de acolhimento, é onde nosso coração esta. Continuo a minha busca, continuo a espalhar os cartazes. E sei que mesmo separado fisicamente de meu coração, procuramos a mesma coisa, a diferença entre nós está na coragem. Ele sem pensar duas vezes rasgou meu peito e fugiu, em busca de sua felicidade e liberdade. E a quem encontra-lo, por favor, contate-me. Antes de mais nada preciso agradece-lo.

Um comentário:

Denys disse...

Doidera rs. Penso que o coração não viaja, nem some. Nós que escondemos, ele sempre fica lá esperando um momento pra poder demonstrar que está vivo. Se não deixar ele viver ele vai "sumir". Seja amando ou sofrendo antes de tudo estamos vivendo :)