sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Bonecas





Tudo naquele lugar parecia estar coberto por uma espessa camada de poeira envelhecida, para Lilya a loja de antiguidades de sua família sempre fora um ambiente intrigante e macabro; onde lembranças das mais variadas pessoas e dos lugares mais improváveis, permaneciam inertes - a espera de algo.
Seus olhos castanhos percorriam o pequeno recinto povoado por cucos alemães, móveis vitorianos, caixinhas de música e prateleiras lotadas. A sensação de voltar àquele lugar lhe era muito catártica, em vinte anos nada mudara - a não ser por um ou outro objeto que tenha entrado ou deixado a loja – o cheiro de livros envelhecidos, fumo e madeira ainda dissipavam suas partículas no ar. Provavelmente não voltaria ali por livre e espontânea vontade, mas com o falecimento de seu avô fora incumbida de decidir o que fazer com essa pequena loja de artefatos. Não lhe era claro o motivo exato do desconforto em que sentia em estar naquele lugar, em seu íntimo imaginava que estaria relacionado com a ideia de estar rodeada de histórias e memórias desconhecidas. Com o intuito de superar essa sensação concentrava-se em suas próprias memórias particulares de cada uma daquelas peças.
A primeira lembrança que vinha em sua mente era a de seu avô sentado em uma cadeira grande e vermelha, a qual empurrava vagarosamente para trás quando desfrutava seu alcatrão. Em suas memórias de menina, lembrava-se da fumaça subindo até o teto rústico de madeira e dissolvendo-se em cada fresta dos armários. Quando isso ocorria, sua mente curiosa leva seu corpo até os artefatos expostos em cristaleiras.
Por vezes, passava horas tentando inventar histórias para como cada um daqueles objetos chegara até ali, deveria ter por volta de oito anos nesta época. Fantasiava que quando todas as luzes se apagavam a cristaleira de bonecas ganhava vida, como na história do Soldadinho de chumbo ou até mesmo do Quebra-nozes. Seu eu adulto, revivia esses detalhes enquanto perambulava pela sala entulhada de coisas até que se deparou com a cristaleira. O tempo parecia não ter chego ali, nenhum objeto fora vendido, nem algum outro acrescentado a coleção. Olhava para aquelas figuras feitas a imagem e semelhança de seus criadores e indagou-se se não seríamos todos bonecos e bonecas.
Entre marionetes, soldados de chumbo, bonecas de pano, porcelana e madeira, quis olhar para dentro de si e novamente se questionou; “Se eu fosse uma boneca, do que eu seria? Como eu seria? O que sentiria?”.
Olhando para aquela porção de bonecas, sentia-se familiarizada com uma pequena matryoshka de porcelana pintada à mão. Provavelmente, se fosse uma boneca seria como ela; milhares em uma, de uma fragilidade desconhecida em relação a sua estrutura até que o impacto com o chão lhe atinja, tornando mesmo com a cola mais potente, um reparo irremediável as cicatrizes de sua vida.  Desde pequena sempre teve medo de bonecas, em seu âmago sempre lhe pairou a sensação de que almas de outras crianças estivessem presas naqueles olhos de vidro, plástico ou de botões.
Em algum lugar de sua mente memórias de seu avô tomavam forma; lembrava-se da feição brava daquele ancião robusto lhe dizendo para não mexer em nada, principalmente nas bonecas. Era irônico, agora era uma mulher, e mesmo assim ainda tinha medo de bonecas. Lilya esperou ouvir a voz rouca de seu avô lhe repreendendo, contudo, encontrou apenas o silêncio que foi quebrado por uma antiga caixinha de música.

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